Muitos católicos costumam rezar, após o Rosário, a Ladainha de Nossa Senhora, mas poucos conhecem bem o grande valor teológico e simbólico de suas invocações.
Sábado à tarde, entrei numa igreja de uma pequena cidade do interior.
Na penumbra, algumas pessoas que tinham terminado de rezar o Rosário começaram a recitar diversas invocações em honra de Nossa Senhora, seguidas todas elas do pedido "rogai por nós".
Várias das invocações são óbvias, nem precisariam de explicações.
Por exemplo: "Santa Mãe de Deus, rogai por nós" ou "Mãe do Criador, rogai por nós".
Se Nossa Senhora é Mãe de Jesus Cristo, e Ele é o nosso Deus e Criador, é normal invocá-La desse modo.
Mas, confesso, eu passaria por um aperto se me perguntassem: por que Nossa Senhora é invocada como Torre de David ou Espelho de Justiça? Por que Torre de David e não Torre de Abraão ou de Moisés? Qual a origem dessas invocações?
Não seria espiritualmente mais proveitoso repetir uma invocação sabendo seu significado?
Se amanhã, numa reunião com algum alto dignitário, eu tivesse que dizer algo, preparar-me-ia para não repetir mecanicamente coisas ouvidas sem conhecer bem seu sentido.
Quando rezamos, em última análise dirigimo-nos a Deus, superior a qualquer dignitário (do Lat. Dignitariu s. m., aquele que exerce uma dignidade ou cargo elevado; aquele que tem alta graduação honorífica) deste mundo; portanto, devemos procurar entender razoavelmente o sentido das preces que fazemos.
É claro que Deus é misericordioso e aceita benignamente as orações feitas com devoção e desejo de agradá-Lo, mesmo se não compreendemos inteiramente o significado delas. Estamos certos de que, se a Santa Igreja colocou em nossos lábios pecadores aquelas orações, é porque elas são agradáveis a Deus.
Mas o próprio desejo de agradar a Deus deve levar-nos a procurar entender com profundidade o significado daquilo que Lhe dizemos, e com isso, também tornar mais eficaz o pedido que fazemos.
Assim sendo, vejamos a procedência de algumas invocações da Ladainha Lauretana, o que certamente resultará em aperfeiçoarmos nossa vida espiritual. Para isso ajudou-me muito o livro Na escola de Maria, de autoria de André Damino (*).
Origem das ladainhas
A palavra ladainha vem do grego e significa súplica (do Lat. supplicare, dobrar por baixo, os joelhos s. f., acto ou efeito de suplicar; oração ou pedido instante e humilde; prov., doce de ovos e farinha, coberto de açúcar.).
Mas desde o início da Igreja ela foi utilizada para indicar não quaisquer súplicas, mas as que eram rezadas em conjunto pelos fiéis que iam em procissão às diversas igrejas.
Há, naturalmente, numerosas ladainhas, dependendo do que é pedido nas diversas procissões.
Quando a casa na qual morou Nossa Senhora, na Palestina, foi transportada milagrosamente para a cidade de Loreto (Itália), em 1291, a feliz novidade espalhou-se rapidamente, dando início a numerosas peregrinações.
Com o correr do tempo, uma série de súplicas a Nossa Senhora foi sendo composta pelos peregrinos que ali iam, os quais A invocavam por seus principais títulos de glória. Posteriormente essa ladainha era cantada diariamente no Santuário, e os peregrinos que de lá voltavam a popularizaram em todo o orbe (do Lat. orbe, mundo
s. m., esfera; globo; mundo; universo; qualquer corpo celeste. Católico).
Chama-se lauretana por ter sua origem em Loreto.
Algumas invocações têm sido acrescentadas pelos Papas ao longo dos tempos, outras são agregadas para honrar a protecção de Nossa Senhora a alguma Ordem religiosa, como fazem os carmelitas, os quais rezam a ladainha lauretana carmelita, com quatro invocações a mais.
Mas o corpo central das ladainhas permanece o mesmo.
Composição da Ladainha
No início da Ladainha Lauretana, as invocações não se dirigem a Nossa Senhora, mas a Nosso Senhor e à Santíssima Trindade, pois dizemos Senhor, tende piedade de nós, Jesus Cristo, ouvi-nos, etc. Depois invocamos o Padre Eterno, o Filho e o Espírito Santo.
Por quê?
Tudo em Nossa Senhora nos conduz a seu divino Filho, e por meio dEle à Santíssima Trindade, que é nosso fim último. Isto é algo que os protestantes não entendem ou não querem entender:
Maria Santíssima é o melhor caminho para se chegar a Deus.
Após essa introdução da ladainha, seguem-se três invocações, nas quais pronunciamos o nome da Virgem (Santa Maria) e lembramos dois de seus principais privilégios: - o ser Mãe de Deus e Virgem das virgens.
A seguir, há um grupo de 13 invocações para honrarmos a Maternidade de Nossa Senhora, e outras seis para honrar sua Virgindade.
Em seguida, 13 figuras simbólicas; quatro invocações de sua misericórdia e, finalmente, 12 invocações d’Ela enquanto Rainha gloriosa e poderosa.
Em geral, é no grupo das 13 invocações com figuras simbólicas que surgem as maiores dificuldades de compreensão.
A nossa civilização fechou-se para o simbolismo, e aquilo que poderia ser até evidente em outras épocas, hoje ficou obscurecido pelo exclusivismo concedido ao espírito prático.
A própria vida contemporânea contribui para isto.
Assim, por exemplo, como explicar ou ressaltar, a pessoas que ficam fechadas em cidades feias e perigosas, a beleza de uma estrela? Igualmente, o ritmo de vida corrida e excitante de hoje não favorece a meditação ou a contemplação das maravilhas da criação.
Alguns significados
Vejamos então o significado destas 13 invocações simbólicas.
Espelho de Justiça — Justiça, aqui, entende-se em seu sentido mais amplo de santidade. Nossa Senhora é chamada assim, porque Ela é um espelho da perfeição cristã. Toda perfeição pode ser admirada n’Ela, do mesmo modo como podemos admirar uma luz reflectida na água.
Sede da Sabedoria — Nosso Senhor Jesus Cristo é a Sabedoria, pois, enquanto Deus, tudo sabe e tudo conhece. Ora, Nossa Senhora durante nove meses encerrou dentro de si seu divino Filho; Ela foi, portanto, a sede da Sabedoria. E continua a sê-lo, pois é n’Ela que encontramos infalivelmente a Nosso Senhor.
Causa de Nossa Alegria — a verdadeira alegria não é o riso. Rir muito nem sempre significa felicidade. É muito mais feliz a mãe carregando amorosamente seu filho do que um papalvo que ri à-toa. E a maior alegria que um homem pode ter é a de salvar-se e estar com Deus por toda a eternidade. Ora, antes da vinda de Nosso Senhor, o Céu estava fechado para nós. Foi o sacrifício do Calvário que nos reconciliou com o Criador e nos proporcionou a verdadeira e eterna felicidade. Como foi por meio de Nossa Senhora que o Redentor da humanidade veio à Terra, Maria Santíssima é, pois, a causa de nossa maior alegria.
Vaso Espiritual — Nada tem mais valor do que a verdadeira Fé. Na Paixão e Morte de Nosso Senhor, quando até os Apóstolos duvidaram e fugiram, foi Nossa Senhora quem recolheu e guardou, como num vaso sagrado, o tesouro da Fé inabalável.
Vaso Honorífico — Na nossa época, a honra quase não é considerada.
Pelo contrário, muitas vezes a falta de carácter e a falta de vergonha são louvadas. Mas a honra e a glória, na realidade, valem muito.
E Nossa Senhora guardou cuidadosamente na sua alma todas as graças recebidas, e manteve a honra do género humano decaído (adj., que decaiu; abatido; decadente; arruinado; empobrecido).
Se não tivesse existido Nossa Senhora, ficaria faltando na criação quem representasse a perfeição da criatura, fiel até o extremo heroísmo.
Vaso Insigne de Devoção — Devoto quer dizer dedicado a Deus.
A criatura que mais se dedicou e viveu em função de Deus foi Nossa Senhora, tendo-o realizado de forma tal, que melhor é impossível.
Rosa Mística — A rosa é a rainha das flores.
É aquela que possui de forma mais definida e esplêndida tudo quanto carateriza uma flor.
Igualmente Nossa Senhora, no campo da vida espiritual ou mística (s. f., estudo das coisas divinas ou espirituais; vida contemplativa; por ext. fanatismo doutrinário), possui de forma mais primorosa tudo aquilo que representa a perfeição.
Torre de David — Lemos na Sagrada Escritura que o rei David tomou a fortaleza de Jerusalém dos jebuseus e edificou a cidade em torno dela. "E David habitou a fortaleza, e por isso se chamou cidade de David" (Paralipômenos, 11-7). Naturalmente, o rei David fortificou a cidade, para torná-la inexpugnável (do Lat. Inexpugnabile adj. 2 gén., não expugnável; inconquistável; invencível) e dotou-a de forte guarnição.
A Igreja Católica é a nova Jerusalém, e nela temos uma torre ou fortaleza que nenhum inimigo pode invadir ou destruir, que é Nossa Senhora.
Ela constitui o ponto de maior resistência e melhor defesa. Por isso, nesta invocação honramos a Nossa Senhora reconhecendo que nunca houve, nem haverá, quem melhor proteja os fiéis e defenda a honra de Deus do que Ela.
Torre de Marfim — O marfim é um material que tem características raras na natureza.
Ele é ao mesmo tempo muito forte e muito claro.
Igualmente Nossa Senhora é muito forte espiritualmente, a maior inimiga dos inimigos de Deus, e de uma pureza alvíssima.
Assim Ela contraria a ideia falsa de que as coisas de Deus devam ser sempre muito doces, suaves e fracas, ou que a verdadeira força têm-na os impuros.
Casa de Ouro — O ouro é o mais nobre dos metais.
Por isso, sempre que desejamos dar alguma coisa que seja insuperável, a oferecemos em ouro — uma medalha de ouro numa competição, por exemplo.
Se tivéssemos que receber o próprio Deus, procuraríamos fazê-lo numa casa que não fosse superável, neste sentido uma casa de ouro.
E a Virgem Santíssima é a casa de ouro que acolheu Nosso Senhor quando veio ao mundo.
Arca da Aliança — No Antigo Testamento, na Arca da Aliança ficavam guardadas as tábuas da lei dadas por Deus a Moisés e um punhado do maná recebido milagrosamente no deserto.
Por isso ela lembrava as promessas e a protecção de Deus.
Nossa Senhora é, no Novo Testamento, a Arca da Aliança que protege o povo eleito da Igreja Católica e lembra as infinitas misericórdias (do Lat. Misericórdia s. f., compaixão pela desgraça alheia; dó; perdão; instituição de piedade e de caridade; ant., punhal que os cavaleiros traziam do lado direito e com que matavam o adversário derrubado, se este não pedia misericórdia. bandeira da -: pessoa sempre disposta a encobrir ou a perdoar as faltas de outrem; o m. q. capa da misericórdia; capa da -:vd. bandeira da misericórdia) de Deus.
Porta do Céu — Nossa Senhora é invocada desse modo, pois foi por meio d’Ela que Jesus Cristo veio à Terra, e é por Ela que nos vêm todas as graças, as quais têm como finalidade nos levar ao Céu, nossa morada eterna.
Assim, Ela favorece a nossa entrada no Céu, como a porta favorece a entrada num local.
Estrela da Manhã — Pouco antes de nascer o sol, quando a escuridão é maior e vai começar a clarear, aparece no horizonte uma estrela de maior luminosidade. Depois, quando as outras estrelas desaparecem na claridade nascente, ela ainda permanece. Assim foi Nossa Senhora, pois o seu nascimento significava que logo nasceria o Sol de Justiça, Nosso Senhor Jesus Cristo.
E quando a Fé se perdia até entre o povo eleito, Ela continuava a acreditar e esperar. Ela é o modelo da perseverança na provação e o anúncio da Luz que virá.
Temos assim, resumidamente, algumas explicações das invocações da Ladainha Lauretana.
Esperemos que a compreensão delas nos ajude a rezar com maior fervor tão meritória oração.
* André Damino, Na escola de Maria, Ed. Paulinas, 4ª edição, São Paulo, 1962.