sábado, 31 de outubro de 2009

FAZ SENTIDO REZAR PELOS DEFUNTOS? – Uma reflexão oportuna de Bento XVI


Alguns teólogos recentes são de parecer que o fogo [do purgatório] que simulta­nea­mente queima e salva é o próprio Cristo, o Juiz e Salvador. O encontro com Ele é o acto decisivo do Juízo. Ante o seu olhar, funde­‑se toda a falsidade. É o encontro com Ele que, queimando­‑nos, nos transforma e liber­ta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos. As coisas edificadas durante a vida podem então revelar-se palha seca, pura fanfarro­nice e desmoronar-se. Porém, na dor deste encontro, em que o impuro e o nocivo do nosso ser se tornam evidentes, está a salva­ção. O seu olhar, o toque do seu coração cura-nos através de uma transformação certa­mente dolorosa «como pelo fogo». Contudo, é uma dor feliz, em que o poder santo do seu amor nos penetra como chama, consentindo­‑nos no final sermos totalmente nós mesmos e, por isso mesmo totalmente de Deus. […] No momento do Juízo, experimentamos e acolhemos este prevalecer do seu amor sobre todo o mal no mundo e em nós. A dor do amor torna-se a nossa salvação e a nossa alegria. É claro que a «duração» deste quei­mar que transforma não a podemos calcular com as medidas de cronometragem deste mundo. O «momento» transformador deste encontro escapa à cronometragem terrena: é tempo do coração, tempo da «passagem» à comunhão com Deus no Corpo de Cristo.
... No antigo judaísmo, exis­te também a ideia de que se possa aju­dar, através da ora­ção, os defuntos no seu estado intermédio (cf. por exemplo, 2Mac 12,38-45: obra do I século a.C.). A prática correspondente foi adoptada pelos cristãos com grande natura­lidade e é comum à Igreja oriental e ocidental. […] Às almas dos defun­tos, pode ser dado «alívio e refrigério» mediante a Euc­aristia, a ora­ção e a esmola. O facto de que o amor possa che­gar até ao além, que seja possível um mútuo dar e re­ceber, permane­cendo ligados uns aos outros por vínculos de afecto para além das fron­teiras da morte, constituiu uma convicção fundamental do cristianismo através de to­dos os séculos e ainda hoje permanece uma experiência recon­fortante. Quem não senti­ria a necessidade de fazer chegar aos seus entes queridos, que já partiram para o além, um sinal de bonda­de, de gratidão ou mesmo de pedido de perdão? Aqui levantar-se-ia uma nova questão: se o «purgatório» con­siste simplesmente em ser purificados pelo fogo no encontro com o Senhor, Juiz e Sal­vador, como pode então intervir uma terceira pessoa ainda que parti­cularmente ligada à outra? Ao fazermos esta pergunta, devere­mos dar-nos conta de que nenhum homem é uma mônada fechada em si mesma. As nossas vidas estão em profunda comunhão entre si; através de numerosas interacções, estão concatenadas uma com a outra. Nin­guém vive só. Ninguém peca sozinho. Ninguém se salva sozinho. Conti­nuamente entra na minha existência a vida dos outros: naquilo que penso, digo, faço e realizo. E, vice-versa, a minha vida entra na dos outros: tanto para o mal como para o bem. Deste modo, a minha intercessão pelo outro não é de forma alguma uma coisa que lhe é estra­nha, uma coisa exterior, nem mesmo após a morte. Na trama do ser, o meu agradeci­mento a ele, a minha oração por ele pode significar uma pequena etapa da sua purifi­cação. E, para isso, não é pre­ciso converter o tempo terreno no tempo de Deus: na comu­nhão das almas fica superado o simples tempo terreno. Nunca é tarde demais para tocar o coração do outro, nem é jamais inútil. Assim se esclarece melhor um ele­mento importante do conceito cris­tão de esperança. A nossa esperança é sempre essencialmente também esperança para os outros; só assim é verdadeiramente espe­rança também para mim [Cf. Catecsimo da Igreja Católica, n. 1032]. Como cristãos, não basta perguntarmo-nos: como posso salvar-me a mim mesmo? Deveremos antes perguntar-nos: o que posso fazer a fim de que os outros sejam salvos e nasça também para eles a estrela da esperança? Então terei feito também o máximo pela minha salva­ção pessoal. [Bento XVI, Enc. Spe Salvi, nº 48].

Fonte: Boletim Igreja Viva (Paróquia de S. Lourenço de Ermesinde)

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